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Comunicando-se Com Caixas de Notas (Zettelkasten)

Um Relato Empírico

Niklas Luhmann

I

                O que se segue é um pedaço de sociologia empírica. Diz respeito a mim e a alguém mais, a saber minhas caixas de notas (ou arquivo de notas de índice). Deveria estar claro que métodos usuais de sociologia empírica cairiam nesse caso especial. Mesmo assim, é empírico, como esse caso realmente mostra. E sua pesquisa, de onde podemos, pelo menos o que espero, concluir, mesmo que um dos participantes, ou melhor: ambos, concluem eles mesmos.

                Para conclusões ou pesquisas que incluam outros casos, precisamos de problemas, conceitos e, sempre que possível, teorias. Para nós dois, ou seja, eu e minha caixa de notas, é fácil pensar sistemicamente. Em qualquer caso, isso é pressuposto. Apesar disso, nós escolhemos uma teoria comunicativa como ponto inicial. Ninguém ficará surpreso que nós consideramos nós mesmos como sistemas, mas e comunicação ou mesmo comunicação bem-sucedida? Um de nós escuta o outro? Isso precisa ser explicado.

                Que caixas de notas podem ser recomendadas como parceiros da comunicação é o primeiro de tudo devido a um problema simples de pesquisa teórica econômica e técnica. É impossível pensar sem escrever; pelo menos é impossível de forma sofisticada ou em rede. De alguma forma precisamos marcar diferenças, capturar diferenças as quais são tanto implícita quanto explicitamente em conceitos. Somente se assegurarmos dessa forma a constância do esquema que produz informação, a consistência dos processos subsequentes de processamento da informação pode ser garantida. E se alguém tem que escrever de qualquer forma, é útil aproveitar a vantagem dessa atividade para criar no sistema de notas um parceiro competente de comunicação.

                Uma das pressuposições mais básicas da comunicação é que parceiros podem surpreender um ao outro mutualmente. Isso acontece na forma que informação pode ser produzida um no outro. Informação é um evento intra-sistemático. Resulta quando um compara uma mensagem ou entrada em relação a outras possibilidades. Informação, então, origina-se somente em sistemas que possuem um esquema comparativo – mesmo se isso se resume a “isto ou aquilo outro”. Para comunicação, nós não temos que pressupor que ambas as partes usam o mesmo esquema comparativo. O efeito da surpresa até aumenta quando não é o caso e quando nós acreditamos que a mensagem significa alguma coisa (ou é útil) em comparação ao cenário de outras possibilidades. Colocando de outra forma, a variedade de sistemas de comunicação aumenta quando acontece de que os dois parceiros de fato se comunicam face a diferentes objetivos comparativos (Isso significa que é útil para o outro parceiro). Isso requere a adição de aleatoriedade no sistema – aleatoriedade no sentido que o acordo no qual esquemas comparativos diferentes não foram fixados ou que a informação que é transmitida pela comunicação é correta, mas antes isso acontece (ou não acontece) “na ocasião” da informação.

                Se um sistema comunicativo se mantém por um longo período, teremos que escolher a rota da alta especialização técnica ou a de incorporar a aleatoriedade e a informação gerada localmente. Aplicado a coleções de notas, podemos escolher a rota da especialização temática (como notas sobre obrigações governamentais ou podemos escolher a rota de uma organização aberta. Nós decidimos pela última. Depois de mais de 26 anos de sucesso e de dificuldades ocasionais, nós podemos agora assegurar o sucesso ou pelo menos da viabilidade dessa abordagem.

                Naturalmente, a rota que cria um parceiro na comunicação que é feita para longos trajetos é aberta e não tematicamente limitada (somente limitando a si mesma), cria certas demandas estruturais nos parceiros. Você poderia, dada a grande confiança que ainda é depositada nas habilidades dos seres humanos, confiar que eu atendo a essas pressuposições. Mas e a caixa de notas? Como pode ser concebido que vai adquirir a competência comunicativa correspondente? Eu não posso responder a essa questão dedutivamente, não revendo todas as possibilidades e selecionando as melhores. Resta nos ater aos banhos da experiência e dar somente uma descrição saturada pela teoria.

II

                Os requisitos técnicos de uma caixa de notas envolvem caixas de madeiras, as quais tem gavetas que possam ser puxadas para abrir, e pedaços de papel no formato “octavo” (mais ou menos o tamanho de metade de um papel formato de carta. N. T. metade de um A4). Nós deveríamos escrever somente em um lado desses papéis de tal forma que ao buscarmos conteúdos nele nós não temos que retirar o papel inteiro para lê-lo. Isso dobra o espaço, mas não inteiramente (uma vez que não escreveremos em ambos os lados de todas as notas). Essa consideração não é insignificante visto que a organização das caixas pode, depois de algumas décadas, se tornar tão grande que não possa ser facilmente usada a partir da cadeira de alguém. Para neutralizar essa tendência, eu recomendo o uso de papel normal e não cartolina.

                Essas são meras externalidades as quais consideram somente quão fácil o uso de cartões de índice pode ser. Elas não influenciam sua funcionalidade. Para a vida interna do cartão de índice, para a organização das notas ou seu histórico mental, não é muito importante que decidamos contra a ordem sistemática em acordo com tópicos e subtópicos e escolhamos um posicionalmente fixo. Um sistema baseado no conteúdo (como os tópicos de um livro) significaria que fizemos uma decisão que nos amarraria à certa ordem por décadas! Isso necessariamente leva muito rapidamente a problemas de localização se consideramos o sistema de comunicação e nós mesmos como capazes de desenvolvimento. O local fixo não precisa de sistema. É suficiente dar a cada nota um número facilmente visto (dentro ou à esquerda da primeira linha) que nunca seja mudado e por consequência tenha seu local endereçado. Essa decisão sobre estrutura é que redução da complexidade de arranjos possíveis, o que permite a criação de uma alta complexidade na nota e por consequência torna possível sua habilidade de comunicar em primeiro lugar.

                Números fixos, abstraídos de qualquer ordem baseada no conteúdo pautando-se na estrutura inteira tem um número de vantagens as quais, somadas, nos permite alcançar uma ordem mais alta. Essas vantagens são:

  1. A possibilidade de arbitrariamente ramificar internamente. Nós não precisamos adicionar notas ao final, mas podemos conectá-las em qualquer lugar – mesmo a uma palavra particular no meio de um texto contínuo. Uma nota com o número 57/12 pode então ser continuada pela 57/13, etc. Ao mesmo tempo pode ser suplementada em uma determinada palavra ou pensamento por 57/12a ou 57/12b, etc. Internamente, essa nota pode ser complementada por 57/12a1, etc. Na própria página eu uso letras vermelhas ou números para sinalizar o local da conexão. Isso pode significar várias posições de conexão na nota. Dessa forma, um tipo de crescimento interno é feito possível, dependendo do tipo de material no qual a ideia ocorre. A desvantagem é que o texto originalmente contínuo é frequentemente quebrado em centenas de notas imediatas. Porém, se nós numeramos os papéis sistematicamente, nós conseguimos encontrar o texto original inteiro facilmente.
  2. A possibilidade de conectar. Uma vez que todos os papéis têm números fixos, você pode adicionar quantas referências a eles quanto quiser. Conceitos centrais tem muitos links o que mostra em quais outros contextos podemos materiais relevantes para eles. Através das referências podemos, sem muito trabalho ou papel, solucionar o problema de armazenamento múltiplo. Dada essa técnica, é menos importante onde colocamos a nova nota. Se existem várias possibilidades, nós podemos solucionar o problema como quisermos e simplesmente gravamos a conexão por um link ou referência. Frequentemente o contexto no qual estamos trabalhando sugere uma multiplicidade de links para outras notas. Isso é especialmente o caso quando a nota de índice está volumosa. Nesses casos é importante capturar as conexões radialmente, como eram, mas ao mesmo tempo também gravar imediatamente os links nas notas para os quais estão sendo ligadas. Nesse procedimento, o conteúdo sobre o qual estamos tomando nota é enriquecido também.
  3. Registrar. Considerando a falta de uma ordem sistemática, nós devemos regular o processo de redescoberta de notas, visto que não podemos depender na nossa memória dos números (A alteração dos números e dos caracteres alfabéticos na numeração das notas ajuda a memória e é uma ajuda visual quando procuramos por elas, mas é insuficiente. Assim, precisamos de um registro de palavras chave que constantemente atualizamos. Os números (corrigidos) de notas particulares é também indispensável para o registro. Outra ajuda complementar pode ser um aparato bibliográfico. Notas bibliográficas as quais extraímos da literatura não deveriam ser anotadas dentro do índice de cartões. Livros, artigos, etc., os quais de fato lemos deveriam ser colocados em uma nota separada com informações bibliográficas em uma caixa separada. Você será capaz não só de determinar depois de algum tempo  que você realmente leu e o que você só anotou para preparar para ler, mas também adicionará links numerados para as notas, os quais são baseados no trabalho ou sugeridos por eles. Isso mostra ser útil porquê nossa própria memória – outros terão experiências similares a minha – trabalha parte com palavras-chave e parte com nome dos autores.

                Como resultado de um trabalho extensivo com essa técnica um tipo de memória secundária surgirá, um alter ego com o qual nós constantemente nos comunicamos. Isso prova ser similar a nossa própria memória de tal forma que não tem uma ordem construída exaustivamente de seu todo, não hierarquia, e mais certamente não linear como um livro. Somente por isso ganha vida própria independentemente de seu autor. A integridade dessas novas podem somente ser descrita como uma desordem, mas no fundo é uma desordem com uma estrutura interna não arbitrária. Algumas coisas se perderão, algumas nunca serão vistas de novo. Por outro lado, não haverá centros preferidos, formações de nódulos e regiões com as quais trabalharemos mais frequentemente que outras. Haverá complexos de ideias que são concebidas em grande escala, mas nunca serão completadas; haverá ideias incidentais as quais começaram como links de passagens secundárias e são continuamente enriquecidas e expandidas de tal forma que elas tenderão a dominar o sistema cada vez mais. Para concluir: essa técnica garante que sua ordem a qual é meramente formal não se torne uma limitação, mas adapta para seu desenvolvimento conceitual.

                Similarmente como epistemologia tem desistido da ideia de que existem “representações privilegiadas” que nos permite controlar o valor de verdade que outras representações ou reinvindicações tem, nós devemos desistir da ideia de preparar um índice de cartões sobre os quais deveria existir lugares ou notas que tenham um tipo especial de conhecimento garantido. Toda nota é somente um elemento que recebe seu valor somente da rede de links e backlinks dentro do sistema. Uma nota que não é conectada a essa rede se perderá no arquivo de cartões e será esquecido por ele. Sua redescoberta depende de acidentes e de caprichos de que essa redescoberta signifique alguma coisa no momento que é encontrada.

III

                Se você deseja educar um parceiro em comunicação, será bom prover a ele independência desde o início. Uma caixa de arquivos, a qual foi feita de acordo com as sugestões dadas podem exibir grande independência. Pode existir igualmente formas adequadas para alcançar esse objetivo. A redução descrita a uma fixada, mas meramente formal ordem de colocação e a combinação resultante de ordem e desordem é, contudo, uma dessas formas.

                Naturalmente, independência pressupõe uma medição mínima da complexidade intrínseca. A caixa de notas necessita de um número de anos para alcançar sua massa crítica. Até lá, funciona como um mero contêiner do qual podemos recuperar o que colocamos nele. Isso muda com seu crescimento tamanho e complexidade. Por outro lado, o número de abordagens e ocasiões para questionamentos aumenta. A caixa de notas se torna um instrumento universal. Você pode colocar quase tudo nela, e isso não somente local e em isolamento, mas com possibilidades internas de conexões (com outros conteúdos). Se torna um sistema sensível que internamente reage a muitas ideias desde que elas sejam anotadas. Se perguntamos, por exemplo, por que de um lado os museus estão vazios enquanto por outro exibições de pinturas de Monet, Picasso ou Medici são muito cheias, a caixa de notas aceita essa questão sob a perspectiva de “preferência pelo que é limitado temporariamente”. As conexões que já existem internamente são, obviamente, seletiva, como esse exemplo prova. Elas também não caem no limite do que é óbvio porque não podemos cruzar a borda entre aquele que tomas notas e a caixa em si. Cada nova entrada pode obviamente se tornar isolada, como a palavra-chave “Picasso” para a exposição do Picasso. Se, entretanto, procurando comunicar-nos com a caixa de notas, precisamos buscar possibilidades internas para os links as quais resultem no inesperado (i. e. informação). Poderíamos tentar generalizar as experiências de Paris, Florença, Nova Iorque dentro de conceitos como “arte” ou “exposições” ou “aglomeração” (inter-agente) ou “massa” ou “liberdade” ou “educação”, para ver como a caixa de notas reage. Usualmente é mais frutífero buscar formulações de problemas que relacionam coisas heterogêneas umas com as outras.

                De qualquer forma, a comunicação se torna mais frutífera quando conseguimos ativar a rede interna de links na ocasião da escrita de notas ou fazendo perguntas. A memória não funciona como a soma de acessos ponto a ponto, mas sim utiliza relações internas e torna frutífera somente nesse nível de redução de sua própria complexidade. Dessa forma, mais informações se tornam disponíveis nesse momento isolado de um impulso de busca que alguém tinha em mente. Existe também mais informação que alguma vez foi armazenada na forma de notas, a caixa de notas provê possibilidades combinatórias as quais nunca foram planejadas, nunca preconcebidas ou concebidas dessa forma. Esse efeito de inovação é baseado por um lado na circunstância que a busca provoca possibilidades de fazer relações as quais não poderiam ser traçadas antes disso. Por outro lado, é baseada também no fato de que horizontes internos de seleção e comparações não são idênticos com o processo de buscar por eles.

                Em comparação com essa estrutura, a qual oferece possibilidades de conexão que podem ser atualizadas, a importância do que tem realmente foi percebida é secundária. Muitas notas se tornarão inúteis ou não poderão ser usadas em uma ocasião dada. Isso vale tanto para trechos que só são úteis no caso de formulações especialmente marcantes e para nossas próprias deliberações.  Publicações teóricas não resultam, portanto de cópias simples que podem ser encontradas na caixa de notas. A comunicação com a caixa se torna frutífera somente em um alto nível de generalização, notoriamente de estabelecer relações de comunicativas. Isso se torna produtivo somente a partir do momento de análise, e é assim vinculado a um determinado momento e é, em elevado grau, acidental.

IV

                Alguém poderia perguntar se os resultados desse tipo de comunicação não são talvez também acidentais. Isso poderia, contudo, equivaler a uma conjuntura que é muito imediata. O papel dos acidentes na teoria da ciência não é discutido. Se você aplica modelos evolucionários, acidentes assumem um papel importante. Sem eles, nada acontece, nenhum progresso é feito. Sem variação no material dado de ideias, não há possibilidades de examinar e selecionar novidades. O problema verdadeiro torna-se assim produzir acidentes com probabilidades suficientemente elevadas para a seleção. Como conhecemos a partir da análise de processos de mutação na biologia evolucionista, mutações são eventos complexos e altamente regulados, os quais somente porque são pré-selecionadas em seu próprio nível exibem aquele tipo de estabilidade que é o pressuposto para permanência seletiva. Eles são acidentes no sentido de que não são ajustados aos fatores que os selecionam, mas dependem eles mesmos de ordens complexas.

                Esse paralelo não deveria ser exagerado; mas você não se enganará assumindo que em uma sociedade e especialmente no âmbito da pesquisa científica ordem resulta somente a partir de uma combinação de desordem e ordem. Mas essa declaração sobre origens não inutiliza as condições de análise. Pelo contrário, elas são ativadas. Na contradição a distinção alienígena entre origem e valor, começamos hoje a partir de um pressuposto de que isolar esses dois aspectos um do outro não é possível nem metodologicamente significativo, já que mesmo para a criação de sugestões aleatórias é preciso organização e somente de modo a ser suficiente para as demandas de velocidade, acumulação e probabilidade de sucesso, as quais são necessárias dentro de uma sociedade dinâmica.

                No nível abstrato da investigação empírica relacionada com a teoria da ciência a comunicação com caixas de notas é certamente uma das muitas possibilidades. Os acidentes de leitura desempenham um papel da mesma forma que mal entendidos resultantes de processos de pensamento interdisciplinar. Podemos confirmar que comunicação com caixas de notas pode ser considerada como um equivalente funcional e que essa abordagem, comparada a outras, tem muitas vantagens como velocidade e à adaptabilidade mútua.

Fonte: tradução de https://luhmann.surge.sh/communicating-with-slip-boxes

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